Wednesday, February 07, 2007

O padre e os filhotes

Outro dia fiquei deliciado com o relato do sucedido num infantário em Setúbal, sob a égide de um tal Padre Manuel Vieira do Centro Paroquial Nossa Senhora da Anunciada! O episódio consistiu numa distribuição de folhetos, aos pais dos alunos, contendo um texto e um questionário. Quanto ao questionário não me pronuncio, pois no fundo trata-se de uma espécie de estágio para os milhões de questionários que os putos terão que preencher na vida escolar, elaborados por “pitas” esquizóides à procura de um clone do Angélico Vieira ou de qualquer outro parolo de turno.
Relativamente ao texto, aí a história já é diferente. Fazer um texto, na primeira pessoa, onde o protagonista é um feto que foi esquartejado e depois atirado a um balde é, no mínimo, artístico.
O que mais me agradou no texto nem foi o carácter verídico que os responsáveis lhe quiseram imprimir. Quantos de nós não conhecem histórias de embriões ou fetos que escrevem aos pais abortivos. Surgem assiduamente em segundo lugar no tipo de cartas mais escritos por miúdos, logo a seguir às dirigidas ao Pai Natal.
Verdadeiramente comovente é a linguagem usada. O uso prolixo de diminutivos lembra-nos que, embora o embrião ainda não tenho o corpo nem a mente totalmente formados, já é capaz de escrever um texto melodramático, piroso, perfeitamente capaz de ser usado como letra na próxima complexa e exigente composição musical do Emanuel.
Se o conteúdo da notícia televisiva me agradou, nem imaginam o êxtase que senti ao ouvir, via rádio, as declarações do Padreco que gere a tal tasca, responsável pela distribuição dos folhetos.
O homem, confrontado com o teor exacto do texto, parecia acometido de uma súbita amnésia, pois parecia não estar a reconhecer os excertos do texto que lhe eram lidos pela provocadora jornalista.
Depois de inteirado do que havia escrito, reconheceu, titubeante, que aquilo era o que efectivamente acontecia às criancinhas no ventre da mãe. Especificando, eram cortados e lançados a um balde. Mas, num assomo de honestidade quase laica, lá admitiu que as coisas poderiam nãos se passar bem assim, já que muitas vezes os filhotinhos (como eles ternamente chama aos fetos) eram lançados não para um balde, mas sim para uma bacia.
A situação até podia ser analisada por uma vertente negativa: podíamos pensar na insidiosa campanha da Igreja católica a favor do não no referendo de 11 de Fevereiro, nas técnicas falaciosas e terroristas que usam para tentar manobrar a opinião pública, do aproveitamento nojento que fazem da influência que têm na sociedade e no estado Português. Mas não vamos por aí…
Os argumentos pró-não são relativamente conhecidos: a inviolabilidade da vida humana, a taxa de crescimento negativo da população, os gastos orçamentais absurdos e incomportáveis com as futuras cirurgias abortivas. O que varia é a ordem de primazia que dão aos argumentos. De facto, se a vida é inviolável como princípio basilar, porquê vir agora acenar com alertas de tesouraria. Patético, principalmente vindo de uma franja da população que, regra geral, foge aos impostos (elites que se pavoneiam nos tempos de Antena pelo não) ou que nunca os pagou (Igreja Católica).
Uma insigne deputada socialista, a Dona Matilde Sousa Franco, (daquelas que entram nas listas elegíveis através de acordos obscuros entre o PS e facções ultra conservadoras) disse num debate televisivo o seguinte: As crianças que deixam de nascer por IGV vão fazer falta aos patrões como mão-de-obra. Bem visto! E logo agora que o Primeiro-Ministro andou na China a apregoar aos ventos de leste que os trabalhadores portugueses ganham pouco, são de pouco sustento, coitadinhos. Isto, dito num país onde um trabalhador médio aufere €100 mensais e trabalha 28 dias mensais a um ritmo de 10 horas diárias. Assim se compreendem melhor estas afirmações da Dona Matilde. Não podemos desiludir os empresários chineses e, logo agora, deixar de lhes fornecer mão de obra barata. E tremo só de pensar na cara de desilusão completa dos turistas de meia idade belgas e alemães, quando confrontados com a falta de meninos pobres e disponíveis na Madeira e outros destinos turísticos do País. Já não há muitos, Sr. Schmidt, sabe?! A culpa é do aborto e dos seus defensores, esses criminosos!
Mas, apesar destes argumentos, segundo eles de ordem filosófica, moral e religiosa, mas que no fundo não passam de uma preocupação básica e repugnante pela manutenção do “status quo”, existe um que definitivamente parece estar a ser negligenciado e mesmo esquecido por todos os “opinion makers” aqui do burgo.
A IVG impede o nascimento de muitos filhotinhos, na hilariante terminologia do Padre. Filhotinhos pobres, entenda-se. Daqueles que, sem condições mínimas de vida ou de futuro, vão acabar nas ruas, na prisão ou em Instituições de acolhimento, onde serão alvos fáceis de predadores como o Padre Vieira.
Façamos então a vontade ao Padre e tenhamos muitos filhotinhos, com ou sem condições. Alarguemos o campo de escolha ao homem.
Quanto a mim, jamais poderia ser sacerdote católico por duas razões essenciais: primeiro falta-me a vocação, e segundo, nem gosto muito de criancinhas, prefiro mulheres mais maduras.
Já agora, atentem nas palavras de Zita Seabra, num outro debate sobre a mesma temática, relativamente ao facto de nenhum método anticoncepcional ser 100% eficaz. A militante bloquista Joana Amaral Dias referiu, a propósito desta última evidência: “Quem anda à chuva molha-se!”. A Dona Zita retorquiu empertigada: “Antes de andarem à chuva, devem usar guarda-chuva”. Será que a dona Zita (ex e anti-comunista convicta) não percebe que os pingos que teimam em nos molhar, mesmo com guarda-chuva, são uma metáfora para a falibilidade dos métodos anticonceptivos, referida pela deputada do BE. De qualquer forma a Dona Zita, com estas e com outras acaba por fornecer aos apoiantes do SIM à IVG um argumento poderosíssimo: Por cada Mozart ou Einstein que a IVG impede de nascer, dez milhões de Zitas Seabras nunca chegam a ver a luz do dia, felizmente!
autor do texto: "boy next door"
(salvaguarda-se respeito por todas as opiniões)

2 comments:

Gabi said...

Continuo sem saber o que fazer... Mas uma coisa é certa, começo a ficar farta de tanto ouvir falar em aborto, despenalização e blá, blá, blá. Vejo as pessoas defenderem posições, em vez de debaterem ideias. Que chegue o dia 11 rápidamente!

Jorge said...

Já ninguém sente verdadeiramente o que está por detrás do referendo.
Neste momento é apenas um "sim" ou "não"; uma luta política, religiosa... teimosia, casmurrice.

http://www.intelectual.org/2007/01/lei-do-aborto.html